30 de junho de 2008

Fotografias I


Na penúltima fotografia havia luz.
Na última apareciam asas,
silêncios brancos de resplendor original.
No espelho apenas olhares em verde
e esperas de mar.
Alguém aguardava no silêncio das cinco
ainda o tempo de pintar.

28 de junho de 2008

Tempos



Caiu o telhado e ficou o céu: o tecto.
Apodreceu o piso e ficou a terra: o chão.
Prevaleceu o caos e ficou a magia:
o tempo de semear.

27 de junho de 2008

Véu

Sob um véu de águas
há uma rocha profunda
que me fala de amar
e diz ao ouvido as palavras tenras
dos sons de búzios,
das torneiras do mar

26 de junho de 2008

Nascente


Procurar a chuva mística, o retorno do cauce,
procurar a pedra donda e a encosta das almas,
procurar o som dos ventos cálidos do sul
e partir do leito antigo
e partir...

25 de junho de 2008

Terra Síria



Era um manancial vivo em cada inverno.
Cheirava a liberdade e a lareira
e paria cada primavera
as ânsias da janeira
e os confins do tempo
felino e doce,
enquanto se deixava acarinhar.

É parte da terra hoje no ocaso,
desta terra verde, tenra e húmida,
do colo, da carícia a ronronar,
soterrada com a pena negra
e o sonho longo por sonhar.

24 de junho de 2008

A noite dos espíritos

Em círculo, na eira descoberta, em torno ao espírito da velha Joana, achegamo-nos ao lume primitivo, dançamos e bebemos e comemos e abraçamos, saltamos, trabalhamos as faíscas, sonhamos, cantamos e contamos e amamos a paz e o solstício na alegria de partilhar o bom vinho e a mão.
Da queimada à fogueira, para espantar meigalhos e conjurar em calor de pureza e energia de luz, para enxotar ao medo e a tristeza, para enxotar discórdias e cadeias, para afastar a destruição e a inveja, o rancor, a ira, as impotências, o mal que não nos deixa...
No clamor do tempo primitivo, da vida atemporal da dança, no rito de pandeireta e gaita, na noite da criação de estrelas, na noite dos cometas, os caminhos ascendentes verticais
são a vida sacra do verão.

23 de junho de 2008

A Noite do lume novo

No lume novo o tempo dos mistérios
nas estradas que deixaram de ser,
nas pontes entre Tigres e Eufrates,
que não estão...
que não estão...

Entre o salto original a noite
deixa odor de vida, seiva velha,
o lenho que será cinza
de um clamor metralhado
e a dor da morte nova
enquanto
o espírito eleva uma súplica
até a aurora.

22 de junho de 2008

África no Sul


Ai minha avó, a rulinha, a que foi a África
-contaram-me quando faltou, nos meus cinco anos-
e lá continua, sempre ao Sul
a alimentar as horas da roseira.
A avó dos olhares liberados,
a que ficou num ciclo de nove anos
a aguardar... a livre Maria,
a que gostava do amor e a terra nova
e sempre aventurava o coração,
... a das letras desde o outro lado do mar,
minha madrinha de abraços e ternuras.
Hoje chega esta carta para ti,
sei que a vás abrir com gosto
e que vás compreender na estirpe tua
os sonhos da pequena que ficou,
a que voltou à terra, à mátria verde
dos Pelaios,
ao pé do Pico Sacro,
onde o teu sangue é memória
e as laranjeiras podem florescer.
Minha avó, a filha da aguadeira,
uma casa longa por sonhar,
e uma ilha...
tantas Penélopes em nós,
minha Madrinha, Rulinha,
entre a cozinha e as teias,
a coser vida
e horizontes,
por amar.

Forneirinha



Dizia, aquela mulher era muito homem
e sabíamos de que estava a falar,
de borboletas formosas
que não cabiam no quadro
que os tempos lhe tinham reservado,
de lemes fortes que não sabiam
das lágrimas da noite
e das carícias do dia.
Dizia o alfaiate, o filho da forneira,
minha mãe ficou viúva com sete filhos
e já morreram cinco, e havia poucos meses
que parira o sétimo, e o mais velho
tinha doze anos e pouco tempo depois
foi para América num barco, por ver de ganhar
o pão e a batalha
e ela foi à escola nocturna
por lhe escrever cartas àquele filho,
por ler as notícias que enviava o rapaz,
as de saberás por esta, perto do Rio da Prata...
E eu conhecia a força dos adentros,
a da mão queimada na cinza e na solidão,
o ainda eu não passei fome,
a ganância da casa matriarcal,
eu sabia do dia que arrastou ao cunhado
despido e bêbado à porta da rua,
porque batia na irmã.
E sabia do bichinho-da-seda,
sempre a caminhar nas veias,
a fazer casinha e um longo sinal
no peito da forneira,
que podia tirar o mal do gato,
que podia tirar o mal do medo,
que tinha o poder no coração,
Antónia, a criadora de estirpe,
a dona dos meus lábios,
em canções.

21 de junho de 2008

Horizonte

São os horizontes da tardinha o tempo de ti,
o tempo de esperar um som de ar.
Fluir entre os sonhos e as florestas,
sentir a luz errante no infinito
e perceber a atmosfera a encher tudo
a ser na canção dos ventos.
A cantar mesmo em fé de árvores fortes
quando chega o vendaval,
a chuva rota,
quando é o tempo de raiz,
a semear.

20 de junho de 2008

Espaços


As linhas espaciais, as únicas.
O silêncio longo, recta longa.
A palavra curva, alva de sonhos,
círculos concêntricos.
Entre céu e humidade,
a terra selvagem
aguarda
os tempos novos de danças a beira-mar.

19 de junho de 2008

Luz de água



Energia, energia... a energia da paz: semente longa, semicírculo cálido de águas em rio de luz. Harmonia de orquestras breves, inscrita no espaço preciso do vida, reflectida entre as palavras em noites de plenilúnio e emoção.
Deixo o pleno espírito a ocupar tudo, o espaço triste, impreciso de perder, e alço os olhares até a vida, até o caminho velho que nos guia, até as mãos abertas que nos guardam os tempos mais formosos por ser.

17 de junho de 2008

Água primeira



Renascer, voltar.
Harmónica energia do tempo volto.
Deixar fluir a chuva sobre o peito,
amar com mar do círculo,
povoar a raiz
e buscar a paz,
o equilíbrio.
Sentir ainda a dor.
Sentir ainda o riso.
Pressentir o vento, a onda,
o som dos paraísos.

16 de junho de 2008

Purpúreo


O minúsculo, o nada, o imperceptível
o imerecido,
o ritmo cândido dos olhares limpos
e o som roto das vozes
na sementeira livre,
vagar nos silêncios
e nas carvalheiras,
vegetais, lentos
a povoar universos purpúreos
com fome de luz.

15 de junho de 2008

Espíritos


Os espíritos do Vale ressoam na entranha.
São de luz e água, de céu e rio, são de energia pura em sucessão de vozes,
de linhas várias em sucessão de tempos.
O troféu dos seus braços é o fluir de rostos na dinâmica sentimental do sonho,
a linha da equação da vida nos nomes que transcorrem
e o amor, o amor puro, na sinécdoque da adolescência,
dos corações plenos.

14 de junho de 2008

Luzes


O lume primitivo, celestial,

o que percorre a entranha,

procura a carícia de luz

que não está.

Morde com chamas

a pele inteira,

arde no peito, estremece

as auroras passageiras

em busca da tua mão.


Que não é agora comigo,

nesta luz quase de verão.

13 de junho de 2008

La vie en rose

Num tempo naufragamos.
Perdemos rédeas, leme, nave e tempo,
perdemos compasses de silêncio,
perdemos a palavra afogada,
e o brilho dos peixes e o remo antigo
que sabia as rotas do mar.

Sonhamos sereias que não eram.
Sonhamos faróis que nos deixavam
rumos de luz.

Naufragamos sonhos.
Naufragamos.
Marinheiros somos
e a terra é uma quina no costado.
Pintaremos a velha barca em rosa,
a vida em rosa por partir.

11 de junho de 2008

Primeiro oráculo


O primeiro oráculo chegou ao areal de Razo,
falou com voz de vento sobre as águas
e arrastou pedrinhas até a areia,
arrastou pedrinhas até a alma.

Falou directamente ao espírito,
rodeou-me de som,
ensurdeceu-me,
amou-me com todo o frio do mar grande.

Escavou nos poros da minha pele,
revelou-me meninha de olhos grandes,
esfregou-me com as vagas precisas
do útero materno,
ele, homem, ele mãe, ele oceano.

Chamei-lhe deus e respondeu,
disse: - Ó deusa e tomou-me da mão,
da sua mão preatómica,
do caos inicial onde eros triunfa
e a terra se criou
e o céu se fez de céus errantes
em união livre de amor grande,
naquele tempo no que tinha que nascer...


Estava despida.
Tapei-me.

Pediu-me: - não te vistas,
despida sempre busca o mar,
submerge-te.


Pediu-me: - não finjas, vive
e prometeu-me, disse: - vás sofrer,
é um túnel longo o caminho da luz.

Pediu-me: - Sempre abre os olhos,
abre as mãos e chora,
mas não deixes o medo
passar da tua porta.

Pediu-me: - Não ponhas portas ao medo,
deixa-o entrar, fala-lhe calmo,
olha-o aos olhos,
é um pobre meninho
que não chegou a nascer.

Pediu-me: -Nasce.
E iniciou-se o cômputo das nove luas
a contar desde o primeiro oráculo.

Em tempos

Num tempo há sorrisos francos
e a luz penetra cada instante de pele
e a ternura se faz de nós
corpo dos corpos
e comunga o amor com ténues redes
de sonho desbocado,
de alva pressentida sem pecado
e a paz é o dia eterno
no que resplandece
o olhar
e cruza o céu
o azul extenso e profundo
e nunca chove na tarde
e só chove na manhã, bem cedo,
para sentir mais próprio o leito
e a palavra se diz
doce de menta
sem que acabe o sabor ...
que nunca acabe
e deixe no paladar a liberdade
do seu cálido frescor
e ilhas possíveis
às que chega o redentor.

Num tempo penetram as nuvens
não sei que tempo,
não sei que nuvens
e a dor se encarna em verbo
e não para de chover
e os olhos são pequenos,
pequeninhos,
mas manam lágrimas de frio
suficientes para escurecer
os rios com águas imprevistas
e temor.

Lembra, minha menina triste,
nunca choveu que não escampasse
e trás cada arco-íris há um sol.

10 de junho de 2008

Pedra e mar


Era a água.
Mas a pedra estava,
também me conformava.
A pedra era o corpo.
A água era a entranha.
A pedra era aresta.
A água esperança.
Deixo a onda livre
que enternece e calma
que abaloe a rocha
com ternuras alvas.

9 de junho de 2008

Meia fonte

No tempo das águas livres
meio cano da fonte está tapado,
meio cano basta,
meio cano.

7 de junho de 2008

Muros


Quem colocou, pedra trás pedra,
o muro dos tempos sem perdão?
Volta a vertigem do campo com cancelas
ao muro impossível das lamentações.

4 de junho de 2008

Caminhantes



Entre os pés do tempo e a palavra,
procuro ocos de caminho
e voltam os sapatos da velha Joana,
os que param nas ervas e os sorrisos,
os do solstício,
da velha Joana...
sim, a da eira longa,
da que arrancamos hera e saudades.
Os desejos de ti,
o dia novo,
o verso escondido entre a figueira
e o carvalho,
e os passos na cozinha,
nesta cozinha de aldeia,
de São João a Santiago,
novos passos...

2 de junho de 2008

Luz verde

Em tempo de mística renovada,
nasce a luz.
Encarna-se de verde o tempo
e os espaços não têm portas para o céu.
Livre na paz e da palavra,
sou.

1 de junho de 2008

Ara de luz

No mês de São João, meigas fora,
água de flores,
ara de bênçãos e dons,
cálido tempo de amores,
dias longos,
novo som
e um sorriso renovado
com fogueira de ilusões.